Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
Eric Baracho Dore Fernandes
Atualmente é estudante de graduação em Direito da Universidade Federal Fluminense e estagiário da
Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro. Especial interesse nas áreas do Direito
Constitucional e Direito Público em geral, bem como na área de pesquisa acadêmica,
através das atividades grupo de pesquisas GIPED da Universidade Federal Fluminense, bem como
atividades anteriores de Monitoria (2008) e atividades atuais no conselho editorial da
Revista de Direito dos Monitores da Universidade Federal Fluminense, na qual participou também da
organização de diversos eventos jurídicos e apresentou trabalho premiado com o Prêmio Josué de
Castro na categoria Direitos Humanos e Justiça (2009). Experiência em estágio na Procuradoria Geral
do Estado do Rio de Janeiro (2010), na área de Contencioso Cível de empresa de grande porte (2009)
e em processos multidisciplinares de Regularização Fundiária (2008). Formatura prevista para 2011.
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
Sumário: I. Introdução. II. A evolução da situação jurídica do transexual e da cirurgia de
transexualização no ordenamento jurídico brasileiro em uma análise comparada. III. O reconhecimento
do direito à cirurgia de redesignação sexual. IV. Os direitos da personalidade e a situação civil
do transexual. V. Apontamentos Finais. VI. A omissão da Lei e a jurisprudencialização do direito.
VII. Referências bibliográficas.
Resumo: Desde a década de 70, os brasileiros transexuais dispõem de meios cirúrgicos para a
alteração de seu sexo natural, adequando sua situação física à sua situação emocional e psíquica,
como alguém do sexo oposto. Porém, o reconhecimento a tais direitos não veio de imediato, sendo
objeto de uma longa construção que ainda não se encontra finalizada. O presente artigo busca
destacar os principais pontos dessa trajetória em uma abordagem comparada, estudando os direitos
dessa minoria em duas dimensões distintas: o acesso à cirurgia de redesignação sexual e o direito à
adequação do nome e sexo no registro civil.
Abstract: Since the 70’s, Brazilian transsexuals have access to the proper means to change their
natural gender, adjusting their physical status to their emotional and mental status as someone of
the opposite sex. However, the recognition to such rights didn’t come immediately, being object of
a long construction, not yet finished. This work seeks to discuss the main points of this
trajectory in a comparative analysis, studying the rights of said minority under two distinct
dimensions: the access to the gender reassignment surgery and the right to adjust the registry of
name and gender.
Palavras-chave: Transexualismo. Transexuais. Registro Civil. Nome. Sexo. Cirurgia. Lei.
Jurisprudência. Jurisprudencialização.
I. INTRODUÇÃO
Nem sempre o fato jurídico se mostra capaz de acompanhar o fato social com a mesma velocidade com
que este é produzido. Por vezes, a mobilização e luta se fazem necessárias para adequar a situação
jurídica de determinado contexto à sua situação de fato. O direito é uma construção social e o meio
de atingi-lo é a luta1. A comprovação de tal teoria se torna especialmente visível na análise das
lutas de minorias sociais pela plena efetivação de seus direitos em qualquer âmbito.
1 IHERING, Rudolf Von. A luta pelo Direito. Rio de Janeiro: Editora Rio, 2002.
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
Em especial, as graduais e perceptíveis conquistas dos direitos das minorias transexuais têm se
evidenciado no mundo jurídico nas últimas décadas. Desde a década de 70, os brasileiros têm acesso
aos meios cirúrgicos para adequar sua situação física à sua situação mental e emocional como alguém
do sexo oposto através da cirurgia de redesignação sexual. Contudo, o reconhecimento jurídico dessa
prerrogativa não veio de imediato. Pelo contrário. Inicialmente, chegou a ser considerada uma
prática criminosa em nosso ordenamento.
Ainda que atualmente não mais se considere tal ato como criminoso, o mero reconhecimento do direito
à mudança física não é suficiente para a plena efetivação dos direitos da personalidade para esses
indivíduos. É necessário que a situação jurídica dos indivíduos que buscam esse tipo de alteração
corresponda a sua situação de fato. E essa necessidade de concretização manifesta-se, por exemplo,
através do registro civil. Mais especificamente, o direito à adequação do nome, prenome e sexo no
registro civil, de modo a garantir que tais pessoas usufruam plenamente de seus direitos em sua
nova condição como alguém do sexo oposto, o que hoje ainda é extremamente polêmico.
De modo a ilustrar como tal debate tem sido travado no âmbito jurídico, o presente artigo busca
discutir alguns casos paradigmáticos que tenham por objeto os direitos relativos à condição do
transexual. Inicialmente, será traçado um panorama evolutivo de tais direitos em nosso ordenamento
jurídico à luz do direito comparado. Em seguida, o artigo trará uma análise dos direitos dos
transexuais sob duas dimensões distintas e complementares2. A primeira delas, o reconhecimento do
direito de mudança de sexo per se, bem como dos direitos da personalidade do indivíduo no âmbito do
registro civil. Em seguida, em uma segunda discussão, uma breve discussão de como o tema vem sendo
abordado pelo trabalho do Poder Legislativo, finalizando o artigo com algumas conclusões e
questionamentos pontuais.
Contemporaneamente, se questiona se a resposta oferecida pelo Direito vem obtendo sucesso em
atender às necessidades e expectativas desse fato social. Estariam tais respostas caminhando
na direção de corresponder aos anseios desses indivíduos em obter a plena efetivação de seus
direitos? É o que se procura questionar na breve análise a seguir.
II. A EVOLUÇÃO DA SITUAÇÃO JURÍDICA DOT RANSEXUAL E DA CIRURGIA DE TRANSEXUALIZAÇÃO NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO EM UMA ANÁLISE COMPARADA
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
Preliminarmente, se faz necessário conceituar a característica que define um indivíduo como
transexual. Maria Helena Diniz apresenta, de forma clara, as definições de diversos autores:
“Transexualidade é a condição sexual da pessoa que rejeita sua identidade genética e a própria
anatomia de seu gênero, identificando-se psicologicamente com o gênero oposto. Trata-se de um drama
jurídico-existencial por haver uma cisão entre a identidade sexual física e psíquica. É a inversão
da identidade psicossocial, que leva a uma neurose racional obsessivo- compulsiva, manifestada pelo
desejo de reversão sexual integral. Constitui, por fim, uma síndrome caracterizada pelo fato de uma
pessoa que pertence, genotípica e fenotipicamente, a um determinado sexo ter consciência de
pertencer ao oposto. O transexual é portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual,
com rejeição do fenótipo e tendência a auto- mutilação ou auto-extermínio. Sente que nasceu com o
corpo errado”3.
Historicamente, o primeiro paciente a ser submetido a uma cirurgia de mudança de sexo foi o soldado
norte-americano George Jorgensen, alterando fisicamente seu sexo (de masculino para feminino)
que passou a adotar, em 1952, o nome de Christine Jorgensen.
Já no Brasil, a primeira cirurgia de transexualização registrada oficialmente foi datada em 1971,
quase duas décadas após o caso Jorgensen. O procedimento foi realizado no (a época) senhor Waldir
Nogueira pelo Dr. Roberto Farina. Tendo sido denegado o pedido feito à Justiça Estadual por Waldir
Nogueira para retificação de seu nome e sexo no âmbito do registro civil, houve a instauração de
inquérito policial para averiguação dos fatos. Ao tomar ciência, o Ministério Público Estadual
ofereceu denúncia em face do médico. Ao réu foi imputado o crime previsto no art. 129, § 2°, inciso
III do Código Penal: “Lesão Corporal de Natureza Grave por ter resultado na perda ou inutilização
de função”. Em primeira instância, o juízo da 17a Vara Criminal de São Paulo (Processo nº 779/76)
condenou o réu ao a pena de dois anos de reclusão, julgando procedente a denúncia, sendo sido o Dr.
Roberto Farina beneficiado por sursis, visto se tratar de réu primário.
No entanto, a segunda instância foi favorável ao réu. Após longo julgamento, foi dado provimento ao
recurso e o réu absolvido pela 5ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. Dentre as
razões que motivaram a decisão, houve o reconhecimento do Tribunal de que a suposta “vítima” do ato
realizado pelo médico
3 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 6ª ed. Revisada,
aumentada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2009. P. 280-281.
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010 apresentava uma personalidade totalmente feminina. Não
apenas pensava como uma mulher, mas também agia como uma, e, ao apresentar seu depoimento,
demonstrou-se extremamente satisfeita com o resultado dos procedimentos médicos. Dessa forma, a
adequação ao seu estado físico ao seu estado psicológico se deu como uma maneira de melhorar a
qualidade de vida do indivíduo, uma solução terapêutica. Dentre muitos especialistas contemporâneos
ao caso4, cujos pareceres constaram nos autos do processo, deu seu parecer a Associação Paulista de
Medicina5:
“Reconhecemos que o senso comum de nossa população ainda não está suficientemente informado, ao
contrário de outros países, onde já existe inclusive jurisprudência formada sobre a ação médica
nessas alterações e cuja experiência não podemos deixar de reconhecer”6.
Esse precedente da justiça paulista constituiu-se como um passo inicial para que o ordenamento
jurídico caminhasse na direção de reconhecer tal prática como legítima. É evidente que tal processo
de aceitação não tem se dado sem controvérsias ou oposições. Provavelmente, motivado pela comoção
causada pelo processo, foi aprovado pelo Congresso Nacional o Projeto de Lei nº. 1909-A de 1979,
que acrescentaria um parágrafo 9º ao art. 129 do Código Penal, com a seguinte redação: “Não
constitui fato punível a ablação de órgãos e partes do corpo humano, quando considerada necessária
em parecer unânime de Junta médica e precedida de consentimento expresso de paciente maior e
capaz”.
Contudo, a polêmica social, em especial no âmbito religioso, motivou o então Presidente, General
João Batista Figueiredo, a vetar o referido projeto de lei. Outros projetos de lei, ainda não
aprovados, dispõem sobre o tema. Por exemplo, o projeto de lei nº 70 de 1995 visa acrescentar
parágrafo ao artigo 129 do código penal com a redação de que “não constitui crime a intervenção
cirúrgica realizada para fins de
4 Especialmente elucidativo quanto a essa situação foi o parecer de 1978 do jurista
Heleno Cláudio Fragoso, que proferiu parecer onde entendeu que o cirurgião condenado pelo crime de
lesão corporal grave havia atuado estritamente dentro dos limites do exercício do direito, não
tendo praticado crime algum. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Transexualismo – Cirurgia. Lesão Corporal.
Revista de Direito Penal, nº 25, Rio de Janeiro: Forense, 1979. P. 25-34.
5 Ainda que no âmbito da Associação Paulista de Medicina houvesse consenso quanto ao caráter
terapêutico de tais cirurgias, o próprio Conselho Federal de Medicina levou algum tempo antes de se
manifestar de forma concreta sobre o tema. Em 1991, o Conselho emitiu dois pareceres específicos
onde condenava a prática da cirurgia de mudança de sexo em transexuais, por entender
tratar-se de uma forma de mutilação grave, bem como ofensa à integridade corporal do indivíduo. Em
1997, o próprio Conselho aprova a Resolução nº 1482/97 que autoriza os hospitais públicos ligados à
pesquisa a realizarem de forma gratuita a cirurgia de mudança de sexo. No ano 2002, o Conselho
edita a Resolução nº 1.652, dispondo acerca da cirurgia de transexualização, revogando a Resolução
nº 1.482/97. Ambas as resoluções podem ser encontradas na íntegra em
http://www.gendercare.com/library/cfmtrans.html.
6 O Médico Paulista, Jornal da Associação Brasileira de Medicina, nº 169, dez. 1976.
5
Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010 ablação de órgãos e partes do corpo humano quando,
destinada a alterar o sexo de paciente maior e capaz, tenha ela sido efetuada a pedido deste e
precedida de todos os exames necessários e de parecer unânime de junta médica", bem como
acrescentar na lei
6.015 de 1973, a Lei de Registros Públicos, a hipótese adicional na mudança de prenome nos casos em
que tenha havido intervenção cirúrgica para mudança de sexo.
A atuação do Poder Legislativo ainda não conseguiu apresentar resposta a esse fato social. Em sua
busca pela cidadania plena, o transexual se depara com a falta de dispositivo legal que regulamente
tanto a mudança cirúrgica de gênero, quanto a alteração no registro civil que adequaria sua
situação jurídica à sua situação fática. Devido ao desacordo moral que permeia a sociedade
brasileira, as maiorias não têm aprovado lei regulamentando o tema. O Direito, então, tem
encontrado na jurisprudência, na construção do entendimento consolidado dos tribunais da república,
a forma de lidar com tais conflitos. A jurisprudência tem desempenhado, a esse respeito, um
importante papel contra-majoritário.
Um exemplo bastante controverso foi o caso Roberta Close, que em
1989 realizou a cirurgia de redesignação sexual na Inglaterra e, após a realização da cirurgia,
ingressou em juízo postulando a retificação do registro civil, obtendo êxito em
1992. Contudo, o Ministério Público recorreu da decisão, que foi reformada pelo
Supremo Tribunal Federal em 1997, indeferindo o pedido da autora.
Em 1997, a produção doutrinária sobre o tema ainda era vaga. As informações das quais os
magistrados dispunham eram em muito fundadas em preconceito e desconhecimento. Assim, em
2001, já dispondo de pareceres e vasta produção doutrinária sobre o tema, bem como diversas
resoluções do Conselho Federal de Medicina, a autora obteve sucesso em uma nova ação, cabendo a
ressalva de que não houve o desrespeito a coisa julgada material por se tratar de jurisdição
voluntária e pelos novos fundamentos técnico-doutrinários da ação.
Já no âmbito do direito comparado, é expressiva a corrente favorável ao reconhecimento do
transexualismo e dos direitos inerentes a tal circunstância tanto pela
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010 via judicial, quanto pela legislativa7. A legislação
sueca8, italiana9, holandesa10, alemã11, canadense12, espanhola13, mexicana14 e norte-americana (em
alguns estados15) consagram os direitos dos transexuais de forma plena em seus respectivos
ordenamentos.
Já no Direito Comunitário, a característica jurídica da primazia deste sobre o Direito Interno dos
países integrantes da União Européia16 possibilita às cortes internacionais competentes exercerem
um controle sobre a compatibilidade das disposições de Direito Interno aos tratados de Direito
Comunitário. Essa peculiaridade do Direito Comunitário possibilitou o surgimento de uma
controvérsia jurídica que, mais tarde, se consolidaria como uma decisão paradigmática para o
reconhecimento dos
7 Para uma análise mais densa da legislação comparada, recomenda-se VIEIRA, Tereza
Rodrigues. Nome e Sexo – Mudanças no Registro Civil. 1a Edição. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2008. P. 233-240.
8 A legislação sueca foi pioneira na Europa ao estabelecer pela primeira vez uma lei
para regular a matéria, conhecida como “Lag on faststallande avronstilhotighet i vissa fall”, de
1972. Tal diploma normativo permite aos indivíduos insatisfeitos com seu estado sexual original
recorrerem à autoridade administrativa competente, para que esta reconheça seus
direitos de forma plena, admitindo ainda a possibilidade de recurso no caso de decisão
denegatória.
9 No direito italiano, a primeira tentativa de criação de uma lei que reconhecesse os
direitos dos transexuais tramitou em 1980 na Câmara dos Deputados, visando modificar o artigo 454
do Código Civil. O projeto não obteve êxito em sua tramitação, cabendo à uma lei posterior, de
1982, garantir de forma plena o direito à adequação sexual.
10 Na Holanda, a entrada em vigor da lei que atualmente dispõe da mudança de nome e sexo no
Registro Civil dos transexuais se deu em 1985, alterando e adaptando as disposições do Código Civil
com a inserção dos artigos 29-A e 29-D e adaptação do artigo 21-A do mesmo diploma normativo.
11 Na forma da lei conhecida como “transsexuellengesetz” de 1980, vigorando a partir de
1981.
12 O Código Civil de Quebec dispõe sobre as alterações de nome e sexo no registro civil em
seus artigos 57 a 74.
13 A Espanha aprovou em 2007 Lei de Identidade de Gênero, que permite aos transexuais
adequarem seu nome e sexo no registro civil, com ou sem cirurgia de redesignação sexual, bastando
que um médico constate a necessidade dessas alterações para aquele indivíduo.
14 No México, em 2008, uma reforma do Código Civil passou a prever a alteração de nome e
sexo dos transexuais em seus documentos oficiais.
15 Nos Estados unidos, vários Estados possuem meios jurídicos de reconhecimento aos direitos
dos transexuais. Na Louisiana, por exemplo, há norma que diz que “any person born in Louisiana who,
after having been diagnosed as a transexual or as a pseudohermaphrodite, hás sustained sex
reassignment or corrective surgery which has changed the anatomical structure of the sex of the
individual to that of a sex other than that which appears on the original birth certificate of that
individual, may petition a Court of competent jurisdiction to obtain a new certificate of birth”. O
mesmo ocorre no estado de Illinois, onde uma lei de 1962 permite a retificação no registro civil.
16 Tal princípio passou a ser reconhecido de forma expressa após a decisão do Tribunal de
Justiça das Comunidades no paradigmático caso Costa vs. ENEL, onde firmou-se o
7
Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010 direitos dos transexuais europeus. Trata-se do caso
Goodwin vs. United Kingdom17, onde a Corte Européia de Direitos Humanos entendeu que, no caso
concreto, o Reino Unido agiu de forma incompatível com a Convenção Européia de Direitos Humanos ao
falhar em garantir as prerrogativas a que a autora teria direito como alguém do sexo oposto. A
autora, transexual que havia modificado cirurgicamente seu sexo de masculino para feminino, alegava
que a falha em reconhecê-la juridicamente como mulher lhe causava inúmeros constrangimentos, tais
quais não poder se aposentar na idade mínima exigida para mulheres (60 anos no Reino Unido) e ter
sua privacidade violada pelos colegas de trabalho, que através de seu Número de Seguro Nacional
descobriam que Goodwin era transexual. Felizmente, a Corte Européia de Direitos Humanos reconheceu
a violação das disposições a respeito da privacidade do indivíduo, contida da Convenção Européia de
Direitos Humanos, o que impediu que a informação que se tratava de indivíduo transexual
fosse revelada. Reconheceu também o direito de Goodwin (e, conseqüentemente, qualquer transexual
que houvesse se tornado mulher) de se aposentar com 60 anos.
Um diploma internacional em especial merece destaque. A Declaração Universal do Genoma Humano e dos
Direitos Humanos estabelece que todos possuem direito ao respeito por sua dignidade e direitos
humanos, independentemente de suas características genéticas. Essa dignidade faz com que seja
imperativo não reduzir os indivíduos a suas características genéticas e respeitar sua singularidade
e diversidade18. O sexo é justamente uma característica determinada geneticamente, de tal forma que
o transexual encontra nessa declaração mais um fundamento para pleitear seu direito de ser
reconhecido da forma que realmente é.
Caracterizada e contextualizada a situação jurídica do transexual na atualidade, serão analisados
mais detalhadamente os direitos do transexual em nosso ordenamento jurídico, considerando tais
direitos a partir de uma divisão temática em duas dimensões de direitos, a saber: o reconhecimento
do direito à cirurgia de redesignação sexual e os direitos da personalidade e a situação civil do
transexual.
III. O RECONHECIMENTO DO DIREITO À CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO SEXUAL
entendimento de que o ordenamento jurídico interno dos países integrantes da Comunidade Européia
não possuiriam legitimidade para contrariar disposições contidas nos tratados comunitários. Sobre
o tema, Cf. LEGALE FERREIRA, Siddharta. O direito público no século XXI: Da
constitucionalização à internacionalização do direito, mimeo, 2009.
17 Caso Christine Godwin vs. United Kingdom. Disponível no site da Corte Européia de
Direitos
Humanos, em www.echr.coe.int.
18 Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos. Disponível
em http://www.ghente.org/doc_juridicos/dechumana.htm. Acesso em 10/10/2009.
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
Antes do surgimento de qualquer controvérsia relativa ao status do transexual perante a ordem
civil, se faz mister trazer a discussão a um nível que precede esse tipo de questionamento, que
seria o direito à cirurgia de mudança de sexo per se. Afinal, garantir os direitos relativos à
mudança de nome e sexo do transexual no registro civil sem antes assegurar o acesso destes aos
meios necessários para efetivarem tal mudança de forma física seria o equivalente a criar um
direito que na prática se mostraria vazio e incapaz de diminuir a angústia sofrida por esses
indivíduos.
Como bem define Tereza Rodrigues Vieira19, o direito a obter a cirurgia de redesignação sexual se
inclui no direito social à saúde, em sua acepção positiva20, pois o transtorno de identidade de
gênero se trata de transtorno de ordem psicológica e médica. É a condição em que o indivíduo nasce
com um sexo biológico, mas se identifica com os indivíduos pertencentes ao gênero oposto,
considerando tal fato desarmônico e desconfortável. O transexual se considera como alguém do sexo
oposto, insatisfeito. Não deseja ser tratado ou curado dessa condição, mas obter a adequação da sua
identidade física a sua identidade mental. O desejo de se submeter à cirurgia de redesignação
sexual não é um mero capricho, mas uma imposição terapêutica para a melhoria da sua saúde global.
Dada a inegável necessidade de tal cirurgia como solução para proporcionar a plena adequação do
sexo psicológico ao físico, o Conselho Federal de Medicina resolveu autorizar a realização desse
tipo de cirurgia em hospitais universitários ou públicos adequados para pesquisa, nos termos da
Resolução nº 1482 de 2007. A resolução é a primeira a autorizar explicitamente esse tipo de
cirurgia, determinando, contudo, o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar composta por
médico, psiquiatra, cirurgião, psicólogo e endocrinologista para acompanhar o paciente durante um
período mínimo de dois anos.
A Resolução nº. 1652 de 2002 ampliou as hipóteses em que a cirurgia poderia ser realizada. A
Resolução 1652 revogou a de número 1482 e, atualmente, regulamenta esse tipo de procedimento no
âmbito do Conselho Federal de Medicina. Por ter uma natureza de transtorno médico e psíquico, o
Conselho Federal de Medicina é quem estabelece os critérios para a realização da cirurgia, através
da supracitada Resolução de número 1652/200221.
19 VIEIRA, Tereza Rodrigues. Nome e Sexo – Mudanças no Registro Civil. 1a Edição. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. P. 221 e 229.
20 Segundo Canotilho e Vital Moreira, o direito a saúde admite duas vertentes: “(...) uma,
de natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham
de qualquer acto que prejudique a saúde; outra, de natureza positiva, que significa o
direito às medidas e prestações estaduais visando à prevenção das doenças e tratamento delas”.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. P.
342-343.
21 “Art, 3o: Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo
enumerados: 1.Desconforto com o sexo anatômico natural; 2.Desejo expresso de eliminar os
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
Não há prática de lesão corporal de natureza grave pelo cirurgião que realize esse tipo de
cirurgia, considerando também que o Conselho Federal de Medicina estabelece parâmetros materiais
para permitir ou não a redesignação, resta apenas um último questionamento: Como se verifica, no
caso concreto, o acesso do paciente aos meios materiais de realização da cirurgia?
A omissão do legislador não pode tornar impossível o exercício de um direito por essa minoria. Foi
excepcional a atuação do Tribunal Regional Federal da 4a Região na Apelação Cível nº
2001.71.00.026279-9/RS. Confira-se a ementa de tal decisão:
EMENTA - Apelação Cível nº 2001.71.00.026279-9/RS
DIREITO CONSTITUCIONAL. TRANSEXUALISMO. INCLUSÃO NA TABELA SUS DE PROCEDIMENTOS MÉDICOS DE
TRANSGENITALIZAÇÃO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE E PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO POR MOTIVO DE SEXO.
DISCRIMINAÇÃO POR MOTIVO DE GÊNERO. DIREITOS FUNDAMENTAIS DE LIBERDADE, LIVRE DESENVOLVIMENTO
DA PERSONALIDADE, PRIVACIDADE E RESPEITO À DIGNIDADE HUMANA. DIREITO À SAÚDE. FORÇA NORMATIVA DA
CONSTITUIÇÃO.
1 - A exclusão da lista de procedimentos médicos custeados pelo Sistema Único de Saúde das
cirurgias de transgenitalização e dos procedimentos complementares, em desfavor de
transexuais, configura discriminação proibida constitucionalmente, além de ofender os direitos
fundamentais de liberdade, livre desenvolvimento da personalidade, privacidade, proteção à
dignidade humana e saúde.
2 - A proibição constitucional de discriminação por motivo de sexo protege heterossexuais,
homossexuais, transexuais e travestis, sempre que a sexualidade seja o fator decisivo para
a imposição de tratamentos desfavoráveis.
3 - A proibição de discriminação por motivo de sexo compreende, além da proteção contra tratamentos
desfavoráveis fundados na distinção biológica entre homens e mulheres, proteção diante de
tratamentos desfavoráveis decorrentes do gênero, relativos ao papel social, à imagem e às
percepções culturais que se referem à masculinidade e à feminilidade.
genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo
oposto; 3.Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois
anos;4. Ausência de outros transtornos mentais.“
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4 - O princípio da igualdade impõe a adoção de mesmo tratamento aos destinatários das medidas
estatais, a menos que razões suficientes
exijam diversidade de tratamento, recaindo o ônus argumentativo
sobre o cabimento da diferenciação. Não há justificativa para tratamento desfavorável a transexuais
quanto ao custeio pelo SUS das
cirurgias de neocolpovulvoplastia e neofaloplastia, pois (a) trata-se de
prestações de saúde adequadas e necessárias para o tratamento médico do transexualismo e
(b) não se pode justificar uma discriminação sexual (contra transexuais masculinos) com a invocação
de outra discriminação sexual (contra transexuais femininos).
5 - O direito fundamental de liberdade, diretamente relacionado com os direitos fundamentais ao
livre desenvolvimento da personalidade e de privacidade, concebendo os indivíduos como sujeitos de
direito ao invés de objetos de regulação alheia, protege a sexualidade como esfera da vida
individual livre da interferência de terceiros, afastando imposições indevidas sobre transexuais,
mulheres, homossexuais e travestis.
6 - A norma de direito fundamental que consagra a proteção à dignidade humana requer a consideração
do ser humano como um fim em si mesmo, ao invés de meio para a realização de fins e de valores que
lhe são externos e impostos por terceiros; são inconstitucionais, portanto, visões de mundo
heterônomas, que imponham aos transexuais limites e restrições indevidas, com repercussão no
acesso a procedimentos médicos.
7 - A força normativa da Constituição, enquanto princípio de interpretação, requer que a
concretização dos direitos fundamentais empreste a maior força normativa possível a todos os
direitos simultaneamente, pelo que a compreensão do direito à saúde deve ser informada pelo
conteúdo dos diversos direitos fundamentais relevantes para o caso.
8 - O direito à saúde é direito fundamental, dotado de eficácia e aplicabilidade imediatas, apto
a produzir direitos e deveres nas relações dos poderes públicos entre si e diante dos
cidadãos, superada a noção de norma meramente programática, sob pena de esvaziamento do caráter
normativo da Constituição.
9 - A doutrina e a jurisprudência constitucionais contemporâneas admitem a eficácia direta da norma
constitucional que assegura o direito à saúde, ao menos quando as prestações são de grande
importância para seus titulares e inexiste risco de dano financeiro grave, o que inclui o direito à
assistência médica vital, que prevalece, em princípio, inclusive quando ponderado em face de outros
princípios e bens jurídicos.
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
10 - A inclusão dos procedimentos médicos relativos ao transexualismo, dentre aqueles
previstos na Tabela SIH-SUS, configura
correção judicial diante de discriminação lesiva aos direitos
fundamentais de transexuais, uma vez que tais prestações já estão contempladas pelo sistema público
de saúde.
11- Hipótese que configura proteção de direito fundamental à saúde derivado, uma vez que a atuação
judicial elimina discriminação indevida que impede o acesso igualitário ao serviço público.
12 - As cirurgias de transgenitalização não configuram ilícito penal, cuidando-se de típicas
prestações de saúde, sem caráter mutilador.
13 - As cirurgias de transgenitalização recomendadas para o tratamento do
transexualismo não são procedimentos de caráter experimental, conforme atestam Comitês de Ética em
Pesquisa Médica e manifestam Resoluções do Conselho Federal de Medicina.
14 - A limitação da reserva do possível não se aplica ao caso, tendo em vista a previsão destes
procedimentos na Tabela SIH-SUS vigente e o muito reduzido quantitativo de intervenções requeridas.
14 - Precedentes do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, da Corte
Européia de Justiça, do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, da Suprema Corte dos Estados Unidos,
da Suprema Corte do Canadá, do Tribunal Constitucional da Colômbia, do Tribunal
Constitucional Federal alemão e do Tribunal Constitucional de Portugal. DIREITO PROCESSUAL.
LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA.
ABRANGÊNCIA NACIONAL DA DECISÃO.
15 - O Ministério Público Federal é parte legítima para a propositura de ação civil pública, seja
porque o pedido se fundamenta em direito transindividual (correção de discriminação em tabela de
remuneração de procedimentos médicos do Sistema Único de Saúde), seja porque os direitos dos
membros do grupo beneficiário têm relevância jurídica, social e institucional.
16 - Cabível a antecipação de tutela, no julgamento do mérito de apelação cível, diante da
fundamentação definitiva pela procedência do pedido e da presença do risco de dano irreparável ou
de difícil reparação, dado o grande e intenso sofrimento a que estão submetidos transexuais nos
casos em que os procedimentos cirúrgicos são necessários, situação que conduz à auto-mutilação e ao
suicídio. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal
Regional Federal da 4ª Região.
12
Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
17 - Conforme precedentes do Supremo Tribunal Federal e deste
Tribunal Regional Federal da 4ª Região, é possível a atribuição de eficácia nacional à decisão
proferida em ação civil pública, não se aplicando a limitação do artigo 16 da Lei nº 7.347/85
(redação da Lei nº 9.494/97), em virtude da natureza do direito pleiteado e das graves
conseqüências da restrição espacial para outros bens jurídicos constitucionais.
18 - Apelo provido, com julgamento de procedência do pedido e imposição de multa diária, acaso
descumprido o provimento judicial pela Administração Pública. (Destaque nosso)
A decisão do Tribunal Regional Federal da 4a Região em face da Ação Civil Pública em referência
determinou que as cirurgias de redesignação sexual fossem custeadas pelo Sistema Único de Saúde.
Acolhendo a fundamentação do Ministério Público Federal, baseada no respeito à dignidade da pessoa
humana, igualdade, intimidade, vida privada e saúde, essa decisão paradigmática tentou garantir que
o arduamente conquistado reconhecimento ao direito de redesignação do estado sexual não se tornasse
vazio de efetividade pela impossibilidade de meios materiais para alcançá-lo.
No STF, em decisão monocrática da Ministra Ellen Gracie, foi concedido pedido de Suspensão de
Tutela Antecipada (STA 18522), ajuizado pela União em face da decisão da Terceira Turma do Tribunal
Regional Federal da 4a Região. Apesar de não demonstrar discordância da fundamentação do acórdão do
TRF, a Ministra entendeu que a decisão impactaria as finanças públicas, pelo fato das
cirurgias de mudança de sexo não estarem previstas pela programação orçamentária federal. Em
29/09/2009, por meio da petição 137.005, o Procurador-Geral da República comunicou ao STF a edição
da portaria do Ministério da Saúde de número 1.707/200823, que institui a cirurgia de mudança de
sexo no Sistema Único de Saúde. Sendo assim, ocorreu a perda do interesse de agir da União e a
perda superveniente do objeto do pedido de Suspensão de Tutela Antecipada.
Também notável, é o fato dos precedentes jurisprudenciais terem fundamentado de forma tão profunda
a decisão. A fundamentação do acórdão demonstra de forma inegável o quão enraizado se encontra
fenômeno da jurisprudencialização no Direito Brasileiro. Temos a demonstração, no caso concreto, de
tal fenômeno em sua dupla face: a atuação do Judiciário como legislador positivo24, estabelecendo
parâmetros
22 STF, DJ 12/12/2007, STA 185. Rel. Min. Ellen Gracie.
23 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria no 1707/2008. Disponível em
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/prt1707_18_08_2008.html.
24 Sobre a atuação do judiciário como legislador positivo na garantia de direitos humanos e
fundamentais, recomenda-se MARTINS, Marianne Rios. Os Limites da Atuação do Poder Judiciário Como
Legislador Positivo para efetivar direitos humanos de 2a Dimensão. Disponível em
http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/manaus/direito_humano_td_marianne_rios_m
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010 em face da inércia do poder Legislativo em oferecer uma
solução ao fato social e os próprios precedentes jurisprudenciais servindo como fundamentação para
uma decisão, demonstrando que o magistrado não mais se restringe à considerar a jurisprudência como
mero recurso interpretativo auxiliar às fontes do art. 4o da Lei de Introdução ao Código Civil25.
A fundamentação da decisão na jurisprudência de cortes internacionais demonstra também como o tema
dos direitos dos indivíduos transexuais foi objeto de gradual construção pelas correntes
internacionais, tal qual discutido pela contextualização anteriormente feita à luz do direito
comparado. Apesar dos Tribunais Internacionais citados não possuírem qualquer grau de
vinculação para as cortes brasileiras, suas decisões adquirem a força de precedentes,
consolidações do entendimento judicial internacional que acabam por funcionar também como
precedentes para casos concretos de outras ordens jurídicas26. Em especial em relação aos Direitos
Humanos, que se caracterizam por seu elevado grau de universalidade27.
Com os elementos apontados em relação à possibilidade jurídica de disposição do próprio corpo para
cirurgias de redesignação sexual, conclui-se que tal direito tem encontrado amparo, tanto através
das disposições do Conselho Federal de Medicina que atestam a segurança da prática, quanto pelo
entendimento das cortes nacionais. Veja-se, por exemplo, o entendimento expresso de forma evidente
pelo paradigmático julgado da Apelação Cível nº 2001.71.00.026279-9, garantindo a eficácia material
de tal direito.
artins.pdf .
25 Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princípios gerais de direito.
26 Sobre esse diálogo de precedentes, Cf. STAMATO, Bianca. Constitucionalismo Mundial e
‘Intercâmbio mundial entre Juízes’ In: BARROSO, Luís Roberto.(Org.) A reconstrução democrática do
direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. E ainda sobre esse diálogo entre ordens
jurídicas, recomenda-se NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo, 2009. E ainda, em
relação a força que os precedentes vem adquirindo no Brasil, CAMPOS MELLO, Patrícia
Perrone. Precedentes – O desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo,
Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
27 No âmbito dos direitos de transexuais, a Corte Européia de Direitos Humanos tem exercido
excepcional papel na garantia de tais direitos. A exemplo do já citado caso Goodwin vs. United
Kingdom, que estabeleceu parâmetros de eficácia vinculativa para todos os países sob sua
jurisdição. Ainda, sobre a universalização dos direitos do homem em uma evolução histórica,
recomenda-se PARAGUASSU, Mônica. A universalização dos Direitos do Homem no direito das relações
internacionais. Disponível em
http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/recife/direito_intern_monica_paraguassu_silva
.pdf. Acesso em 20/09/2009.
14
Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
Entretanto, deve-se sempre ter em mente que o direito ao acesso a esse tipo de cirurgia deve se
enquadrar em diversos parâmetros, não sendo um direito dependente única e exclusivamente de uma
simples manifestação de vontade. Há de existir uma real necessidade do procedimento, atestada por
profissionais da área médica de acordo com as disposições das resoluções do Conselho Federal de
Medicina que regulamentam a matéria.
Além dos já citados acima, outros parâmetros que transcendem condições inerentes somente ao próprio
indivíduo são necessários para pautar a aplicabilidade desse direito no caso concreto. O direito a
redesignação sexual não é um direito absoluto, pois muitas situações concretas podem envolver o
direito de terceiros. Por exemplo, se durante a vigência de um casamento, um dos cônjuges passa a
sofrer de dúvidas a respeito de sua identidade sexual e, posteriormente, este mesmo cônjuge vier a
mudar seu sexo. Seria esse fato justificativa para a anulação do casamento por erro essencial
quanto à identidade sexual do cônjuge? Justificaria a separação litigiosa judicial por injúria
grave? Ou ainda, justificaria o divórcio por separação de fato?
Para evitar esse tipo de constrangimento, Maria Helena Diniz28 propõe parâmetros materiais de
restrição ao direito de realização da cirurgia de redesignação do estado sexual. A autora defende
que para resguardar o direito de terceiros, a cirurgia deveria ser realizada apenas em um indivíduo
solteiro, divorciado ou viúvo.
Há de se considerar ainda a relação do indivíduo operado com seus filhos. Os direitos e deveres
do transexual para com estes permanecem inalterados. Existe, no entanto, a possibilidade de que o
convívio social dos filhos seja dificultado, por não saber como deverá tratar o pai ou mãe de agora
em diante. E ainda, os filhos (em especial, crianças e adolescentes) poderão vir a enfrentar alguns
problemas em seus relacionamentos sociais devido aos constrangimentos sofridos em decorrência dessa
situação. Por isso, ainda que não deva haver restrições absolutas aos direitos dos transexuais
que sejam pais em recorrerem à cirurgias de redesignação sexual, há de se exigir um criterioso
acompanhamento caso a caso para determinar os efeitos que tal mudança teria na vida das crianças.
No direito comparado, tais parâmetros são observados em diversos países29. Já no Brasil, os
parâmetros para esse tipo de situação deveriam ser levados em consideração em futuras produções
legislativas e jurisprudenciais sobre o tema, de modo a garantir que o direito de terceiros seja
resguardado.
28 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. P
300-301.
29 As leis alemã e sueca, por exemplo, vedam a cirurgia de redesignação sexual para a pessoa
casada, permitindo-a somente à pessoa solteira. Já a lei Holandesa é mais liberal, permitindo tanto
a redesignação sexual para as pessoas casadas e o pleno exercício dos direitos e deveres em relação
aos filhos, inclusive adoção, fazendo a ressalva apenas para a adoção de crianças estrangeiras,
para evitar problemas com o país de origem da criança.
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
Será examinado, a seguir, o direito a redesignação do estado sexual em uma segunda dimensão,
relativa aos direitos da personalidade e a mudança de nome e sexo no Registro Civil.
IV. OS DIREITOS DA PERSONALIDADE E A SITUAÇÃO CIVIL DO TRANSEXUAL
As palavras da doutrinadora Tereza Rodrigues Vieira trazem a lúmen um questionamento essencial.
Confira-se:
“O transexual não quer muito, quer apenas o mínimo essencial para uma sobrevivência digna,
procurando o equilíbrio entre os direitos fundamentais e os sociais. O direito à busca do
equilíbrio corpo-mente do transexual, ou seja, à adequação do sexo e prenome, está ancorado no
direito ao próprio corpo, no direito à saúde e, principalmente, no direito à identidade sexual, a
qual integra um poderoso aspecto da identidade pessoal”.30
O transexual busca, acima de tudo, um equilíbrio, que possibilite a plena harmonia entre corpo e
mente, em uma existência digna e de pleno gozo de seus direitos fundamentais e sociais. Esse
equilíbrio se dá, em uma primeira dimensão, através da alteração do estado físico do sexual à sua
condição psicológica como alguém do sexo oposto. Contudo, isso não é suficiente para, por si só,
assegurar a plena efetivação de seus direitos, visto que sua situação jurídica não corresponde à
sua nova situação fática como alguém do sexo oposto. Dessa forma, há de haver uma readequação em
uma segunda dimensão, concernente à identidade do indivíduo transexual perante o ordenamento
jurídico.
Após um estudo inicial focado no direito ao acesso aos procedimentos cirúrgicos de redesignação
sexual, procede-se à segunda dimensão dos direitos relativos aos direitos dos transexuais, que
representa justamente o direito à correspondência entre a situação de fato e a situação jurídica do
transexual. O acesso pleno e efetivo aos direitos da personalidade, em especial, o nome civil. A
adequação do registro civil, no tocante ao prenome e ao sexo do indivíduo, consubstancia uma das
últimas etapas a serem superadas pelo transexual na adequação da sua situação jurídica e sua
situação de fato, uma etapa essencial na busca por uma vida digna e plena.
Primariamente, se faz mister tecer uma observação preliminar. Não se deve falar sobre alteração do
nome e sexo no registro civil, uma vez que não se trata de
30 VIEIRA, Tereza Rodrigues. Mudança de Sexo: Aspectos Médicos, Psicológicos e
Jurídicos. São Paulo: Livraria Santos Editora, 1996. p. 118.
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010 simples mudança baseada na vontade do autor, e sim de
adequação do registro civil, visto que se trata de uma forma de adequar, como já citado, o estado
jurídico ao estado de fato da pessoa, já que este encontra em desconformidade com aquele.
Especialmente elucidativo nesse sentido é o parecer do Ministério Público, que consta nos autos do
processo relativo ao caso Roberta Close:
(...)“se faz necessário também, eliminar as situações de constrangimento, com intensa dor moral,
por que passa a requerente, ao ter que exibir no meio social identidade que não é sua realidade,
mas decorrente de assento de cartório desconforme a sua realidade – hoje diagnosticada como
verdadeira pela perícia recente” (Destaque nosso).
Um dos precedentes jurisprudenciais mais significativos a ter firmado parâmetros para adequação do
nome civil é o Recurso Especial nº 678.933-RS. Trata-se de polêmico julgado do Superior Tribunal de
Justiça a respeito da averbação no registro público da mudança de nome de um indivíduo por motivo
de mudança de sexo. Segundo o entendimento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, deve ficar
averbado no registro civil do indivíduo que a modificação em questão ao seu nome e sexo decorreu de
uma decisão do poder judiciário. O Recurso Especial em questão teve como recorrente o Ministério
Público do Estado do Rio Grande do Sul contra a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, que em sua ponderação decidiu pela não publicidade da condição de transexual do indivíduo
recorrido.
Na primeira instância, o pedido do interessado foi julgado precedente, ou seja, no sentido de que
fosse feita a mudança requerida. Em seu registro civil, seu nome seria alterado bem como seu sexo,
de masculino para feminino. Essa alteração impediria o fornecimento de certidões com referência à
situação anterior do indivíduo. Contra essa decisão, apelou o Ministério Público ao Tribunal de
Justiça do Estado, alegando o Ministério Público a necessidade de proteger a boa-fé de
terceiros que viessem a se envolver com o indivíduo. No entanto, o Tribunal de Justiça se
manifestou da seguinte forma em relação a tal alegação:
“Quando se fala em prejuízos a terceiro, na verdade se fala na possibilidade de um homem
envolver-se emocionalmente e, por que não dizer, sexualmente com o apelado e descobrir, em
determinado momento, que ela não poderá ter filhos, ou até mesmo que não é mulher 'de nascimento'.
Sendo essa a questão a ser enfrentada, até certo ponto,o mesmo aplicar-se-ia à mulher estéril. Será
que deveriam essas mulheres ter em seus documentos e no registro civil contida esta
condição? Ou seria uma humilhação para elas? Sofreriam algum tipo de discriminação? E se os seus
possíveis companheiros aceitassem essa condição por entenderem ser o amor o bem maior? As respostas
são conhecidas. Os casos são assemelhados,
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010 e por não ter a mulher estéril que expor sua condição
perante a sociedade, não terá P.C. que expor a sua.
Cabe ressaltar que essas suposições de eventuais prejuízos que possam sofrer terceiros, são
hipóteses, não havendo certeza quanto ao caso concreto. Poderia acontecer ou não. Por isso, não
seria plausível a exposição da condição de transexual feminino do recorrido em virtude de
projeções, e, como tais, aleatórias. Se houver, no futuro, alguém que se sinta ameaçado, ou até
mesmo prejudicado moralmente em razão da alteração de vida pela qual optou o apelado, que procure o
remédio jurídico cabível
.
O Direito não pode ficar atrelado ao que dispõem as normas vigentes no país. O Direito é realidade,
é fato social. É o
excepcional. Deve, portanto, o Direito, não fechar os olhos à realidade,
e se inserir nos tempos modernos, evitando qualquer situação constrangedora para
as partes que litigam perante a justiça,
contribuindo sempre para a paz social”.
Perante o STJ, o Ministério Público sustentou a necessidade de averbação no registro civil que
houve alteração de nome e sexo oriunda de uma decisão judicial, ocorrida após cirurgia de
mudança de sexo. A decisão foi favorável ao Ministério Público, reconhecendo a necessidade
de uma averbação no registro civil acerca da alteração do nome. Nas palavras do relator Carlos
Alberto Menezes Direito, “não se pode esconder no registro, sob pena de validar agressão à verdade
que ele deve preservar, que a mudança decorreu de ato judicial nascida da vontade do autor e que
tornou necessário ato cirúrgico complexo”. Na ementa da decisão em questão relata o ministro:
Mudança de sexo. Averbação no registro civil.
1. O recorrido quis seguir o seu destino, e agente de sua vontade livre procurou alterar no seu
registro civil a sua opção, cercada do necessário acompanhamento médico e de intervenção
que lhe provocou a alteração da natureza gerada. Há uma modificação de fato que se não pode
comparar com qualquer outra circunstância que não tenha a mesma origem. O reconhecimento se deu
pela necessidade de ferimento do corpo, a tanto, como se sabe, equivale o ato cirúrgico, para que
seu caminho ficasse adequado ao seu pensar e permitisse que seu rumo fosse aquele que seu ato
voluntário revelou para o mundo no convívio social. Esconder a vontade de quem a manifestou
livremente é que seria preconceito, discriminação, opróbrio, desonra, indignidade com aquele que
escolheu o seu caminhar no trânsito fugaz da vida e na permanente luz do espírito.
2. Recurso especial conhecido e provido.
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
Em primeiro lugar, salienta-se que o eixo temático da discussão e controvérsia nesse caso não é a
legitimidade da mudança de sexo per se, pois a tendência do nosso ordenamento jurídico, em sua
produção jurisprudencial e doutrinária, é a de garantir a concessão desse direito aos interessados,
bem como o direito de ter uma correspondência entre seu registro civil e sua situação fática como
alguém do sexo oposto
– apesar de nem sempre ter sido esse o entendimento31. O exemplo que melhor demonstra essa
tendência atual é a anteriormente discutida decisão da 3ª Turma do Tribunal Regional
Federal da 4ª Região na Ação Civil Pública nº 2001.71.00.026279-9/RS, que determina que o Sistema
Único de Saúde (SUS) inclua na sua lista de procedimentos cirúrgicos a cirurgia de mudança de sexo,
pedido que foi acolhido pela Justiça Federal com abrangência nacional.
Nesse sentido, princípios constitucionais (em especial a dignidade da pessoa humana) têm motivado
decisões do gênero nas cortes brasileiras. Um indivíduo que esteja sofrendo dessas
condições tem reconhecido seu direito de alterar cirurgicamente seu sexo. Nas palavras
do relator do caso, Min. Carlos Alberto Direito:
“No presente feito, não se examina o direito do recorrido de mudar de sexo, mas, apenas, se esse
direito alcançado deve, ou não, constar dos registros, devidamente averbado o fato de que houve
modificação cirúrgica do sexo”.
A questão que se encontra elencada no estudo do presente caso na verdade diz respeito ao âmbito do
registro civil, mas em um aspecto que transcende sua mera alteração no nome e sexo. Diz respeito à
legitimidade ou não da averbação da condição de transexual do indivíduo em tal registro.
O Ministério Público sustentou a tese de que sim, deveria ficar averbado no Registro
Civil de Pessoas Naturais a mudança de sexo, oriunda de decisão judicial, baseando-se na
possibilidade de haver prejuízo a terceiros de boa-fé que venham a se envolver com o indivíduo.
Tendo em vista esse mesmo objeto em outros processos judiciais, ao termo “envolvimento com
terceiros” pode se atribuir tanto um sentido de envolvimento amoroso ou sexual, quanto um sentido
jurídico-obrigacional. Embora esse tipo de questão costume ser suscitada primariamente a
possibilidade de um envolvimento conjugal, existe também o freqüente argumento em casos similares
de que a mudança do nome civil de um transexual possa representar uma situação de insegurança
jurídica, como um modo de eximir o indivíduo de suas obrigações previamente contraídas. Por
exemplo, manifestou- se o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a respeito dessa hipótese:
31 Na primeira cirurgia de mudança de sexo realizada no Brasil, o médico que a realizou,
respondeu a processo criminal perante a justiça paulista.Trata-se do já citado caso do cirurgião
Roberto Farina.
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010 "Apelação. Registro Civil. Transexual que se submeteu a
cirurgia de mudança de sexo, postulando retificação de seu assentamento de nascimento (prenome e
sexo). Adequação do registro à aparência do registrando que se impõe. Correção que evitara'
repetição dos inúmeros constrangimentos suportados pelo recorrente, além de contribuir para
superar a perplexidade no meio social causada pelo registro atual. Precedentes do TJ/RJ.
Inexistência de insegurança jurídica, pois o apelante manterá o mesmo numero do CPF. Recurso
provido para determinar a alteração do prenome do autor, bem como a retificação para o sexo
feminino."32 (Destaque nosso).
No presente caso, contudo, esse foi um argumento que parece não ter sido levantado, de modo que no
que se refere a envolvimento posterior do transexual com terceiros no estudo desse caso será
atribuído somente um sentido conjugal.
A ponderação entre o direito à privacidade do indivíduo transexual em face do direito a
informação e publicidade dos atos processuais foi realizada pelo Tribunal de Justiça
do Estado. Optou-se por proteger o indivíduo transexual, determinando que o
procedimento corresse em segredo de justiça e sem qualquer averbação ou menção anterior ao
indivíduo como alguém do sexo oposto. Na fundamentação de sua decisão, o Tribunal de Justiça fez
inclusive uma comparação à mulher estéril, dizendo que igualmente incidiria em erro o terceiro de
boa fé que se casasse com uma mulher incapaz de ter filhos, e que não se exigia que esta tivesse
tal condição averbada em seu registro civil. Sendo assim, o mesmo se aplicaria ao
transexual.
Em contrapartida, o Superior Tribunal de Justiça não acolheu esses argumentos, afirmando que ao
contrário da mudança de sexo, a condição de estéril não consistia de forma alguma em alteração da
natureza jurídica da mulher a ser demonstrada no registro civil. Ao contrário do que seria a
mudança de sexo, um aspecto relevante para o mundo jurídico e, em especial, para o registro civil.
Assim o relator afirmou o seguinte em seu voto:
“Não creio que os argumentos postos no acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul tenham substância capaz de justificar a conclusão que acolheu, particularmente com a
infeliz comparação com a mulher que por qualquer patologia não pode gerar. Aquela que não pode
gerar tem a mesma benção da sua natureza daquela que pode. Ao dom da criação, que homem e mulher
repartem, com a fecundação, fruto de amor e entrega, de doação e unidade, não se nega a origem
nascida nem se esconde fato resultante de ato judicial. Não se trata de ato submetido ao registro
civil. Não se trata de modificação da sua natureza gerada”.(Destaque nosso)
32 TJRJ-Quarta Câmara Cível, J. 13 set. 2005, AP. CIV. 2005.001.01910, Rel. Des. Luis
Felipe
Salomão..
20
Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
Assim, conclui-se que o Superior Tribunal de Justiça parece ter se pautado em critérios diferentes.
Ao contrário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que em sua fundamentação tentou
encontrar uma resposta realizando uma ponderação entre o direito à privacidade do transexual e o
direito à informação de terceiros, o STJ entendeu que omitir que a mudança tenha sido fruto de um
processo que visa garantir o direito do transexual à igualdade, honra e dignidade seria uma
violação a tais preceitos. Em sua ponderação, colocou o princípio da dignidade acima do próprio
direito do indivíduo à privacidade. Omitir sua condição seria uma forma de preconceito para com a
condição do indivíduo, como podemos observar no trecho do voto relator:
“O reconhecimento se deu pela necessidade de ferimento do corpo, a tanto, como se sabe, equivale o
ato cirúrgico, para que seu caminho ficasse adequado ao seu pensar e permitisse que seu rumo fosse
aquele que seu ato voluntário revelou para o mundo no convívio social. Esconder a vontade de quem a
manifestou livremente é que seria preconceito, discriminação, opróbrio, desonra,
indignidade com aquele que escolheu o seu caminhar no trânsito fugaz da vida e na permanente luz
do espírito”. (Destaque nosso)
A fundamentação do Superior Tribunal de Justiça também entendeu que a averbação no registro civil
de que houve uma mudança decorrente de ato judicial decorrente da vontade do autor é uma forma de
proteção, uma forma de garantir e reconhecer esse direito do autor:
“Não se pode esconder no registro, sob pena de validarmos agressão à verdade que ele deve
preservar, que a mudança decorreu de ato judicial, nascida da vontade do autor e que tornou
necessário ato cirúrgico complexo. Trata-se de registro imperativo e com essa qualidade é que se
não pode impedir que a modificação da natureza sexual fique assentada para o reconhecimento do
direito do autor”. (Destaque nosso)
Com base nessa fundamentação, foi firmado o polêmico entendimento do Superior Tribunal de Justiça
que estabeleceu como necessária à averbação no registro civil de pessoas naturais a mudança de
sexo como resultante de sentença judicial.Contudo, independentemente do mérito da decisão, cabe um
questionamento. Teria a decisão do ministro realmente se adequado à fundamentação usada para
justificá- la no sentido de atender o melhor interesse do autor ao proteger a manifestação de sua
vontade e sua dignidade? Mas é realmente favorável à dignidade do autor a manutenção, à margem do
registro civil, de algo que possa revelar uma possível condição anterior como alguém do sexo
oposto? Os efeitos indesejáveis que uma possível exposição possa causar o autor não representariam,
talvez, um dano ainda maior à sua dignidade?
21
Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
A complexidade desses questionamentos continuou a trazer inquietude aos operadores do Direito. Em
uma decisão recente33, o Superior Tribunal de Justiça determinou a adequação no registro civil do
prenome e do sexo de um transexual de São Paulo, após o indivíduo ter sido apropriadamente
submetido ao procedimento cirúrgico de redesignação sexual. A Justiça Estadual indeferiu seu pedido
de adequação, de forma que o autor recorreu ao STJ. A decisão da Terceira Turma do STJ, tendo como
relatora a Ministra Nancy Andrighi inova em relação ao entendimento consolidado anteriormente, pois
garante que o novo registro civil seja feito sem que nele conste averbação. O registro de que a
designação do sexo foi alterada judicialmente poderá figurar apenas nos livros cartorários. In
verbis:
Ementa Recurso Especial Nº 1.008.398 - SP (2007/0273360-5)
Direito civil. Recurso especial. Transexual submetido à cirurgia de redesignação sexual. Alteração
do prenome e designativo de sexo. Princípio da dignidade da pessoa humana.
- Sob a perspectiva dos princípios da Bioética – de beneficência, autonomia e justiça –, a
dignidade da pessoa humana deve ser resguardada, em um âmbito
de tolerância, para que a mitigação do sofrimento humano possa ser o sustentáculo de decisões
judiciais, no sentido de salvaguardar o bem supremo e foco principal do Direito: o ser
humano em sua integridade física,
psicológica, socioambiental e ético-espiritual.
- A afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade humana, encerra a realização da
dignidade, no que tange à possibilidade de expressar
todos os atributos e características do gênero imanente a cada pessoa. Para o
transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica
psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade.
- A falta de fôlego do Direito em acompanhar o fato social exige, pois, a invocação dos
princípios que funcionam como fontes de oxigenação do
ordenamento jurídico, marcadamente a dignidade da pessoa humana – cláusula geral que permite a
tutela integral e unitária da pessoa, na solução das questões de interesse existencial humano.
- Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira
identidade, o que inclui o reconhecimento da
realidentidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto.
- Somos todos filhos agraciados da liberdade do ser, tendo em perspectiva a transformação
estrutural por que passa a família, que hoje apresenta molde
eudemonista, cujo alvo é a promoção de cada um de seus componentes, em
especial da prole, com o insigne propósito instrumental de torná-los aptos de realizar os atributos
de sua personalidade e afirmar a sua dignidade como
pessoa humana.
- A situação fática experimentada pelo recorrente tem origem em idêntica problemática pela qual
passam os transexuais em sua maioria: um ser humano aprisionado à anatomia de homem,
com o sexo psicossocial feminino, que, após ser submetido à cirurgia de redesignação sexual, com
a
33 STJ, DJU 18/11/2009, RESP 1.008.398/ SP, Rel. Min Nancy Andrighi.
22
Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010 adequação dos genitais à imagem que tem de si e perante
a sociedade, encontra obstáculos na vida civil, porque sua aparência morfológica não condiz com o
registro de nascimento, quanto ao nome e designativo de sexo.
- Conservar o “sexo masculino” no assento de nascimento do recorrente, em favor da realidade
biológica e em detrimento das realidades psicológica e
social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual redesignado,
tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em estado de anomalia,
deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente.
- Assim, tendo o recorrente se submetido à cirurgia de redesignação sexual,
nos termos do acórdão recorrido, existindo, portanto, motivo apto a ensejar a alteração para a
mudança de sexo no registro civil, e a fim de que os assentos sejam capazes de cumprir sua
verdadeira função, qual seja, a de dar publicidade aos fatos relevantes da vida social do
indivíduo, forçosa se mostra a admissibilidade da pretensão do recorrente, devendo ser alterado
seu assento de nascimento a fim de que nele conste o sexo feminino, pelo qual é socialmente
reconhecido.
- Vetar a alteração do prenome do transexual redesignado corresponderia a mantê-lo em uma
insustentável posição de angústia, incerteza e conflitos, que inegavelmente atinge a dignidade da
pessoa humana assegurada pela Constituição Federal. No caso, a possibilidade de uma vida digna para
o recorrente depende da alteração solicitada. E, tendo em vista que o autor vem utilizando o
prenome feminino constante da inicial, para se identificar, razoável a sua adoção no assento de
nascimento, seguido do sobrenome familiar, conforme dispõe o art. 58 da Lei n.º 6.015/73.
- Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já enfrentou tantas dificuldades
ao longo da vida, vencendo-se a barreira do preconceito e
da intolerância. O Direito não pode fechar os olhos para a realidade social
estabelecida, notadamente no que concerne à identidade sexual, cuja realização afeta o mais íntimo
aspecto da vida privada da pessoa. E a
alteração do designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome do
operado, é tão importante quanto a adequação cirúrgica, porquanto é desta um desdobramento, uma
decorrência lógica que o Direito deve assegurar.
- Assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade
sexual consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja
tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que
ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua integridade psicofísica. Poderá, dessa forma,
o redesignado exercer, em amplitude, seus direitos civis, sem restrições de cunho
discriminatório ou de intolerância, alçando sua autonomia privada em patamar de igualdade para com
os demais integrantes da vida civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e
social do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos, frustrações e
dissabores, enfim, uma vida plena e digna.
- De posicionamentos herméticos, no sentido de não se tolerar
“imperfeições” como a esterilidade ou uma genitália que não se conforma exatamente com os
referenciais científicos, e, consequentemente, negar a
pretensão do transexual de ter alterado o designativo de sexo e nome, subjaz
o perigo de estímulo a uma nova prática de eugenia social, objeto de combate
23
Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010 da Bioética, que deve ser igualmente combatida
pelo Direito, não se olvidando os horrores provocados pelo holocausto no século passado.
Recurso especial provido.
Em sua fundamentação, a Ministra entendeu que a averbação à margem do registro civil realmente
significaria a exposição do indivíduo a situações vexatórias e humilhantes. Para ela, se o estado
consente com a cirurgia (e até mesmo financia o acesso ao procedimento, conforme a resolução de
número 1.707 do Ministério da Saúde), deve também prover os meios para uma vida digna. Demonstra
também o já consolidado entendimento da cirurgia de redesignação sexual como solução
terapêutica para a melhoria da qualidade de vida do indivíduo, e entende a alteração no registro
civil como uma adequação de sua situação jurídica ao seu novo estado de fato.
Cabe destacar também a recente Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 427534, proposta pelo
Ministério Público Federal em face do Art. 58 da Lei de Registros Públicos35, Lei nº
6015/73, na redação que lhe conferida pela lei nº 9708 de
1998. A Procuradora Geral da República, temporariamente em exercício, Débora Duprat, pleiteia uma
interpretação conforme a constituição do referido artigo, reconhecendo aos transexuais que assim o
desejarem, o direito de alteração do nome e sexo no registro civil, independente de prévia cirurgia
de redesignação sexual.
A tese sustentada pelo parquet é a de um “direito fundamental de identidade de gênero”, inferido
nos princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade, vedação de discriminações odiosas,
liberdade e privacidade. E de acordo com essa tese, a forma do Art. 58 da Lei nº 6015 encontrar
compatibilidade com esse princípio constitucional seria permitir a mudança do nome e sexo no
registro civil.
Caso o pedido do Ministério Público seja acolhido, essa decisão pode representar uma mudança
paradigmática em relação ao estado civil dos transexuais. Permitiria a mudança do nome mesmo
anteriormente à cirurgia de transexualização. O Ministério Público fundamenta o pedido com base na
legislação alemã36, que reconhece o direito à mudança no registro civil em ambos os casos (antes ou
depois da cirurgia de redesignação sexual). Entende o legislador alemão que não é a cirurgia que
concede ao indivíduo o status de transexual, mas sim a sua condição prévia de total insatisfação
com sua condição física. Nessa circunstância, o direito à alteração do nome no registro civil
independeria da cirurgia.
34 Pendente de julgamento, é possível consultar a inicial no acompanhamento processual
disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?
numero=4275&classe=ADI&codigoClasse=0&ORIGEM=JUR&recurso=0&tipoJulgamento.
35 Art. 58. ”O Prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a substituição por
apelidos públicos notórios”.
36 Na forma da lei conhecida como “transsexuellengesetz” de 1980, vigorando a partir de
1981.
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
VI. A OMISSÃO DA LEI E A JURISPRUDENCIALIZAÇÃO DO DIREITO37
Como já explicitado em diversos pontos do presente artigo, a construção jurídica existente
no direito brasileiro sobre o tema vem de construções doutrinárias, jurisprudenciais e do direito
comparado, não possuindo uma construção legislativa específica sobre os direitos dos transexuais.
Contudo, apesar da omissão da Lei, não se trata de uma omissão completa do Poder Legislativo, pois
existem projetos de lei tramitando no Congresso que tem por objeto direitos da minoria transexual.
O Projeto de Lei nº. 1909-A de 1979 acrescentaria um parágrafo ao artigo 129 do Código Penal que
vigoraria com a seguinte redação: “Não constitui fato punível a ablação de órgãos e partes do corpo
humano, quando considerada necessária em parecer unânime de junta médica e precedida de
consentimento expresso de paciente maior e capaz”. Tal projeto de lei foi vetado pelo Executivo da
época. Ainda assim, tal conduta não é mais considerada criminosa, devido a precedentes
significativos na jurisprudência (em especial, o caso Roberto Farina) e através das
Resoluções do Conselho Federal de Medicina, que classificam o procedimento de redesignação sexual
como terapêutico.
O segundo Projeto de Lei nº 70 de 199538 não se limitou somente à esfera penal. Apesar de também
acrescentar parágrafo ao artigo 129 do Código Penal instituindo que “não constitui crime a
intervenção cirúrgica realizada para fins de ablação de órgãos e partes do corpo humano quando,
destinada a alterar o sexo de paciente maior e capaz, tenha ela sido efetuada a pedido
deste e precedida de todos os exames necessários e de parecer unânime de junta médica", o
legislador atentou também para o âmbito civil e as alterações do nome civil. O Projeto de Lei
acrescentaria dois parágrafos ao art. 58 da Lei 6.015/1973, da Lei de Registros Públicos, que
passariam a vigorar com a redação: “Art. 58 (...) §2o. Será admitida a mudança do prenome mediante
autorização judicial, nos casos em que o requerente tenha se submetido a intervenção cirúrgica
destinada a alterar o sexo originário. §3o. No caso do parágrafo anterior deverá ser averbado ao
registro de nascimento e no respectivo documento de identidade ser a pessoa transexual”.
37 Sobre o tema e o termo “jurisprudencialização” do direito, recomenda-se a leitura da
edição temática da Revista de Direito dos Monitores da UFF, que traz artigos que discutem tal
tendência contemporânea de nosso ordenamento jurídico à luz do Direito Público, Privado e
Processual. Revista de Direito dos Monitores da UFF. 5a Edição. Disponível em
http://www.uff.br/rdm/revistas/rdm_ano2_ed5.pdf. Acesso em 06/01/2009.
38 Projeto de Lei nº 70/1995. Disponível em
http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp? id=15009 . Inteiro teor disponível em
http://www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp? CodTeor=14582.Acesso em 15/09/2009.
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
Entretanto, após parecer unânime da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos
Deputados em 1995, a redação proposta para o § 3o foi modificada, excluindo a
necessidade de incluir na identidade a informação de que se trata de indivíduo transexual e
mantendo a necessidade apenas de uma averbação à margem do registro civil, em consonância com o que
o entendimento atual da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Um pouco mais recente, o Projeto de Lei nº. 6655/200639 traz uma proposta similar ao contido no
Projeto nº. 70/1995. O artigo 58 vigoraria com a seguinte redação:
Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição, mediante
sentença judicial, nos casos em que:
I – o interessado for:
a) conhecido por apelidos notórios;
b) reconhecido como transexual de acordo com laudo de avaliação médica, ainda que não tenha sido
submetido a procedimento médico-
cirúrgico destinado à adequação dos órgãos sexuais;
II – houver fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime por
determinação, em sentença, de juiz competente
após ouvido o Ministério Público.
Parágrafo único. A sentença relativa à substituição do prenome na hipótese prevista na alínea b do
inciso I deste artigo será objeto de averbação no livro de nascimento com a menção imperativa de
ser a pessoa transexual. (NR)”(Destaque nosso)
Esse projeto é mais restrito do que o de número 70/1995, pois diz respeito somente ao registro
civil dos transexuais e não a quaisquer conseqüências penais da ablação dos órgãos sexuais ou dos
atos de disposição do próprio corpo. De qualquer forma, como já dito, a doutrina e a
jurisprudência, bem como as resoluções do Conselho Federal de Medicina, já superaram o paradigma de
classificar tal fato como criminoso. O referido Projeto de Lei também prevê a averbação no registro
civil de que o indivíduo é um transexual. Contudo, a novidade desse projeto de lei está em um
detalhe específico. O transexual pode requerer a adequação do prenome ainda que não tenha se
submetido à cirurgia de redesignação sexual. Esse pequeno, mas relevante detalhe está em
consonância com o pleito do Ministério Público na recente ADI 4275, que destaca disposição similar
contida na lei alemã, que reconhece a natureza do transexual como algo que independe do ato
cirúrgico. A condição de insatisfação do transexual com seu estado físico deveria ser anterior a
qualquer ato cirúrgico. Deve a lei, por isso, reconhecer o direito fundamental do indivíduo à
“identidade de gênero”. Contudo em relação a necessidade de averbação, esse projeto de lei estaria
em dissonância com o entendimento do STJ de que não é necessário averbar a retificação de nome e
sexo no registro civil.
39 BRASIL. Projeto de Lei nº 6655 de 2006. Disponível em
http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=315120. Inteiro teor disponível em http://
www.camara.gov.br/sileg/integras/377166.pdf. Acesso em 15/09/2009.
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
Nenhum desses projetos foi aprovado e, por isso, a lei é omissa no que diz respeito aos
transexuais. A jurisprudência tem encontrado formas de suprir essa lacuna no caso concreto, nas
quais o aplicador da norma tem atuado muitas vezes como verdadeiro “legislador positivo”. Seria de
bom alvitre a elaboração de uma legislação mais ampla que possa nortear a atividade do Judiciário,
para evitar que os tribunais e membros do Ministério Público, por desinformação acerca dos aspectos
contemporâneos dessa questão, deixem de agir da forma mais apropriada para atender aos interesses
dessa minoria.
Os aspectos penais do tema não têm despertado problemas complexos, visto que, na prática, o
consentimento médico já se encontra consolidado para descaracterizar a existência de um crime. O
mesmo não ocorre com aspectos relativos à identificação civil. É também premente que o legislador
cuide dos aspectos relativos ao acesso aos meios necessários para a cirurgia de redesignação
sexual, assim como traçar parâmetros claros para a realização cirurgia. Afinal, a finalidade de tal
procedimento terapêutico relaciona-se à plena efetivação do direito à saúde para os transexuais,
sem o qual torna-se impossível usufruir uma vida plena.
Por isso, são apontados abaixo certos parâmetros40 de função material ainda não observados (ou
observados, mas não ainda de forma a tutelar o fato social forma plena) pela produção legislativa
(Parâmetros Normativos) e jurisprudencial (Parâmetros Jurisprudenciais) na construção do tema,
como sugestões a serem observadas em futuras produções da lei e jurisprudência41.
No âmbito do direito ao acesso à cirurgia de redesignação sexual, há de se traçar diretrizes que
determinem quais transexuais devem obter prioridade na obtenção do tratamento pelo Sistema Único de
Saúde.
O primeiro desses parâmetros deveria levar em consideração as condições financeiras do paciente. É
evidente que alguns transexuais podem ser mais privilegiados nesse aspecto, de modo que poderiam
dispor de clínicas privadas para a realização do procedimento, o que não ocorre com os transexuais
menos afortunados financeiramente. Sendo assim, os transexuais com menos condições financeiras
deveriam ter prioridade.
40 Para uma discussão mais profunda a respeito da metodologia de classificação e aplicação
dos parâmetros no caso concreto, ver LEGALE FERREIRA, Siddharta. Standards: O que são e como
cria-los. Tese de Conclusão de Curso. Universidade Federal Fluminense, 2009.
41 Uma abordagem interessante de como os parâmetros traçados pela jurisprudência dos tribunais
superiores tem norteado a atividade do Poder Legislativo pode ser encontrada em STJ. Jurisprudência
do STJ tem influenciado cada vez mais a elaboração de leis. Disponível em
http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=95438. Acesso em
04/01/2009.
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Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010
Um outro parâmetro é a idade. Um transexual mais velho deveria receber tal tratamento de
forma prioritária em relação a um mais jovem, pois já viveu uma parcela maior de sua vida na
condição física que tanto o atormenta. .
Ainda em relação ao direito do transexual alterar cirurgicamente seu sexo, o ordenamento jurídico
ainda não dispõe de parâmetros que ponderem o direito à mudança de sexo em face do interesse de
terceiros, notadamente cônjuges e filhos do transexual que deseje se submeter a tais procedimentos.
Em relação ao estado conjugal, a doutrina já propõe alguns parâmetros. A exemplo de Maria Helena
Diniz, que, como apontado anteriormente, propõe parâmetros materiais de restrição ao direito de
realização da cirurgia de redesignação do estado sexual. Para a autora, a cirurgia de redesignação
sexual deveria ser realizada apenas em um indivíduo solteiro, divorciado ou viúvo, com o intuito de
resguardar os direitos do cônjuge.
Em relação aos parâmetros que digam respeito à identificação civil do transexual, alguns cuidados
devem ser observados. Uma lei tal qual o Projeto de Lei
70/1995, que obrigue o transexual a se identificar de forma óbvia como tal perante a sociedade
(como na carteira de identidade, por exemplo) apenas serviria para que o indivíduo continuasse a
sofrer de forma freqüente o estigma e o preconceito contra os quais lutou por toda sua vida. O
propósito de tais parâmetros deve ser a proteção da privacidade do transexual, e não sua exposição.
Novamente, Maria Helena Diniz propõe um parâmetro interessante. Para ela, além da averbação à
margem do registro de retificações de prenome e de sexo do requerente, mas também o seu
arquivamento, de forma analógica ao a como se procede com os mandados judiciais em processo
de adoção42. Dessa forma a nova certidão do assento de nascimento fornecida pelo Registro Civil
não deverá possuir qualquer menção à natureza das retificações procedidas, exceto que houve uma
modificação por sentença judicial em segredo de justiça e a autoridade judiciária poderia fornecer
o inteiro teor do mandado, se necessário. Esse parâmetro aparentemente pondera da melhor forma o
direito à privacidade do indivíduo e quaisquer situações que envolvam a segurança jurídica e o
direito de terceiros.
A decisão mais recente do Superior Tribunal de Justiça decidiu pela não averbação do registro civil
do transexual, optando por um parâmetro muito similar àquele
42 Art. 47. O vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no
registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão.
(..)
§ 4º A critério da autoridade judiciária, poderá ser fornecida certidão para a salvaguarda de
direitos.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei No 8069/90. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm. Acesso em 12/10/2009
28
Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010 proposto por Maria Helena Diniz. Contudo, é importante
que uma lei posterior não regule o tema de forma contraditória, o que representaria uma regressão
em relação aos direitos conquistados por essa minoria.
É evidente que a lei, por si só, é incapaz de trazer todas as soluções que o caso concreto exige. A
jurisprudência, justamente por isso, continuará a desempenhar relevante papel contra-majoritário na
construção dos direitos dos transexuais. Porém, esse é um tema de notável complexidade e
exige uma consolidação dos parâmetros necessários para garantir os direitos dessa minoria, que
afinal, apenas deseja ter acesso ao pleno exercício de seus direitos como seres humanos, bem como
cidadãos livres e iguais.
VII. APONTAMENTOS FINAIS
Após a exposição do amplo panorama contemporâneo envolvendo o direito dos transexuais em suas duas
dimensões (tanto o direito à realização de cirurgia de redesignação sexual quanto o direito a
retificação do nome e sexo no registro civil), retoma-se o questionamento feito durante a
introdução deste artigo. Estariam as respostas oferecidas pelo mundo jurídico obtendo sucesso
em atender às necessidades e expectativas desse fato social e regula-lo de forma plena?
Sim, mas não de forma plena. As respostas oferecidas vêm caminhando na direção apropriada para
atender às expectativas desse grupo social, em congruência com a atual tendência internacional
atual a respeito do tema. Entretanto, ainda há um caminho a ser percorrido para que essa situação
encontre a regulamentação plena. Do sucesso da luta jurisprudencial para ver seus direitos
garantidos até a vitória por leis que lhes protejam, o caminho ainda será bastante longo.
No direito ao acesso aos meios cirúrgicos para efetuar a redesignação sexual, o ordenamento
jurídico tem caminhado na direção de garantir esses direitos. Decisões como a da Justiça Federal em
determinar que o Sistema Único de Saúde realizasse cirurgias de mudança de sexo em todo território
nacional são exemplos de entendimentos paradigmáticos no sentido de garantir a efetivação plena dos
direitos fundamentais para esses indivíduos – um grande progresso em relação a períodos em que
mesmo cirurgias particulares estavam sujeitas às sanções penais, pelo entendimento de que tais
cirurgias eram uma forma proibida de disposição do próprio corpo e o cirurgião incorria em crime de
lesão corporal de natureza grave.
Por outro lado, devido à omissão da Lei, esse direito tem encontrado expressão destacada na
jurisprudência, não sendo regulamentado por nenhum diploma legal . E até mesmo os já existentes
parâmetros jurisprudenciais ainda são incertos, insuficientes e incompletos em vários aspectos.
Revelam-se incertos porque as decisões não são coerentes e uniformes, revelando uma tendência ao
casuísmo. São incompletos,
29
Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010 por exemplo, no estabelecimento de parâmetros de
realização da cirurgia de redesignação sexual demanda uma expertise técnica que ultrapassa a
formação jurídica dos julgadores. Mostram-se incompletos por deixar muitas situações da vida sem
normatização.
No âmbito da identificação civil e dos direitos da personalidade, o entendimento atual também foi
progressista, permitindo a retificação do nome e sexo do transexual, visando permitir que esses
indivíduos usufruam desses direitos inerentes à personalidade com a correspondência do seu registro
civil à sua situação fática. Com a paradigmática decisão no Recurso Especial no 678.933, o
Superior Tribunal de Justiça firmou jurisprudência acerca da questão, se manifestando
favoravelmente a alteração do nome e sexo no registro civil, mas fazendo a ressalva de ser
necessária uma averbação à margem do registro civil de que tal retificação foi fruto de uma decisão
judicial. Posteriormente, a decisão no Recurso Especial 1.008.398 deu um passo além, demonstrando o
entendimento de que sequer a averbação seria necessária.
Da mesma forma, no caso do acesso a cirurgias de redesignação sexual, a legitimidade da retificação
no registro civil é algo que encontra amparo apenas na jurisprudência, e não na lei. A recente Ação
Direta de Inconstitucionalidade 4275 propõe uma interpretação conforme a Constituição da Lei de
Registros Públicos, onde o Ministério Público defende a existência de um “direito fundamental à
identidade de gênero”. Caso essa tese seja acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, teremos um novo
parâmetro regulando a matéria. Com a omissão do legislador em incluir os transexuais nas hipóteses
de alteração do registro civil na Lei nº. 6015, a atividade do Judiciário tornou-se responsável
disciplinar esse fato da vida.
Dessa forma, apesar dos inegáveis progressos obtidos nas últimas décadas a respeito da efetivação
dos direitos dos transexuais, o fato social ainda anseia por uma regulamentação plena, tanto pelo
trabalho do Poder Legislativo, quanto da atuação do Poder Judiciário, que tem atuado como
verdadeiro “legislador positivo”, traçando parâmetros mais abrangentes diante da omissão do
Legislativo em regulamentar a matéria. Fato esse que adquire legitimidade em razão do papel
contra-majoritário que a instância judicial ocupa na proteção dos direitos humanos fundamentais das
minorias.
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TRF da 4ª Região, AC Nº 2001.71.00.026279-9/RS, Rel. Des. Federal Roger Raupp
Rios.
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STJ. Transexual consegue alteração de nome e gênero, sem registro da decisão judicial na certidão.
Disponível em http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?
tmp.area=398&tmp.texto=94241&tmp.area_anterior=44&tmp. Acesso em 20/10/2009
STJ. Jurisprudência do STJ tem influenciado cada vez mais a elaboração de leis. Disponível em
http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp? tmp.area=398&tmp.texto=95438. Acesso em
04/01/2009.
Resoluções:
BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1652/2002. Disponível em
http://www.gendercare.com/library/cfmtrans.html.
BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1482/97. Disponível em
http://www.gendercare.com/library/cfmtrans.html.
Portarias:
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria no 1707/2008. Disponível em
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/prt1707_18_08_2008.html.
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